Extraído do livro O renascimento de Marx: principais conceitos e novas interpretações, organizado por Marcello Musto (Autonomia Literária e Jacobin Brasil, 2023).
Negligência desdenhosa e hostilidade intempestiva, rejeição arrogante e adoção marginal, cooptação seletiva e revisionismo seletivo: essas são algumas das estratégias adotadas pelos intelectuais do establishment ao longo dos anos em resposta ao desafio do pensador nascido 205 anos atrás em Trier. No entanto, cá estamos no início da terceira década do século XXI e às vezes parece que as ideias reais de Karl Marx nunca foram tão atuais nem atraíram tanto respeito e interesse quanto hoje.
Desde que a última crise do capitalismo eclodiu em 2008, Marx voltou à moda. Ao contrário das previsões após a queda do Muro de Berlim, quando ele foi condenado ao esquecimento perpétuo, as ideias de Marx são mais uma vez objeto de análise, desenvolvimento e debate. Muitos começaram a fazer novas perguntas sobre um pensador que muitas vezes foi erroneamente identificado com o “socialismo realmente existente” e depois rapidamente descartado depois de 1989.
Jornais e periódicos de prestígio com um grande número de leitores têm descrito Marx como um teórico altamente atual e perspicaz. Em todos os lugares, ele agora é tema de cursos universitários e conferências internacionais. Seus escritos, reimpressos ou lançados em novas edições, reapareceram nas prateleiras das livrarias e o estudo de sua obra, depois de 20 anos de silêncio virtual, ganhou impulso crescente, às vezes produzindo resultados importantes e inovadores. Os anos de 2017 e 2018 trouxeram mais intensidade a este “renascimento de Marx”, graças a muitas iniciativas em todo o mundo ligadas ao 150º aniversário da publicação de O Capital e o bicentenário do nascimento de Marx.
Armas críticas
De particular valor para uma reavaliação geral da obra de Marx foi a retomada da publicação, em 1998, da Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), a edição histórico-crítica das obras completas de Marx e Engels. 28 volumes já apareceram, e outros estão no decorrer da preparação.
Esses volumes contêm novas versões de alguns das obras de Marx (como A Ideologia Alemã), todos os seus manuscritos preparatórios de O Capital de 1857 a 1881, todas as cartas que enviou e recebeu durante sua vida, e aproximadamente duzentos cadernos contendo excertos da sua leitura e reflexões às quais deram origem. Estes últimos formam a oficina de sua teoria crítica, mostrando-nos o complexo itinerário de seu pensamento e as fontes em que ele se baseou para desenvolver suas ideias.
“Marx empreendeu investigações minuciosas de sociedades fora da Europa e expressou-se inequivocamente contra as devastações do colonialismo.”
Esses volumes inestimáveis da edição MEGA – muitos disponíveis apenas em alemão e, portanto, ainda confinados a pequenos círculos de pesquisadores – mostram um autor muito diferente daquele que numerosos críticos, ou autodenominados seguidores, apresentaram por tanto tempo. A publicação de materiais anteriormente desconhecidos de Marx, juntamente com interpretações inovadoras de seu trabalho, abriu novos horizontes de pesquisa e demonstrou mais claramente que, no passado, sua capacidade de examinar o contradições da sociedade capitalista em escala global e em esferas além do conflito entre capital e trabalho. Não é exagero dizer que, dos grandes clássicos do pensamento político, econômico e filosófico, Marx é aquele cuja as ideias mais impactaram e mudaram o mundo nas primeiras décadas do século XXI.
Os avanços da pesquisa, juntamente com as mudanças nas condições políticas, sugerem que a renovação na interpretação do pensamento de Marx é um fenômeno destinado a continuar. Publicações recentes mostraram que Marx se aprofundou em muitas questões – muitas vezes subestimadas, ou mesmo ignoradas, pelos estudiosos de sua obra – que estão adquirindo importância crucial para a agenda política do nosso tempo. Entre elas estão as questão ecológica, a migração, a crítica do nacionalismo, a liberdade individual na esfera econômica e política, a emancipação de gênero, o potencial emancipatório da tecnologia e formas de propriedade coletiva não controladas pelo Estado.
Anticolonial, extremamente atual e nada economicista
Além disso, Marx empreendeu investigações minuciosas de sociedades fora da Europa e expressou-se inequivocamente contra as devastações do colonialismo. Ele também criticou os pensadores que utilizavam categorias peculiares ao contexto europeu em suas análises de áreas periféricas do globo.
Ele advertiu contra aqueles que não observavam as distinções necessárias entre os fenômenos e, principalmente, após seus avanços teóricos na década de 1870, exercia uma grande cautela ao transferir categorias interpretativas entre campos históricos ou geográficos completamente diferentes. Tudo isso é mais evidente hoje, apesar do ceticismo ainda em voga em certos rincões acadêmicos. Assim, 30 anos após a queda do Muro de Berlim, tornou-se possível ler um Marx muito diferente do teórico dogmático, economicista e eurocêntrico que foi exibido por tanto tempo.
“Para Marx, a possibilidade de transformar a sociedade dependia da classe trabalhadora e de sua capacidade, através da luta, de mudar o mundo.”
Claro, pode-se encontrar no enorme legado literário de Marx uma série de afirmações que sugerem que o desenvolvimento das forças produtivas leva à dissolução do modo de produção capitalista. Mas seria errado atribuir a ele qualquer ideia de que o advento do socialismo é uma inevitabilidade histórica. De fato, para Marx, a possibilidade de transformar a sociedade dependia da classe trabalhadora e de sua capacidade, através da luta, de mudar o mundo.
Se as ideias de Marx forem reconsideradas à luz das mudanças que ocorreram desde a sua morte, serão de grande utilidade para a compreensão da sociedade capitalista, mas também lançarão luz sobre o fracasso das experiências socialistas no século XX. Para Marx, o capitalismo não é uma organização de sociedade em que os seres humanos, protegidos por normas jurídicas imparciais capazes de garantir a justiça e a equidade, gozam de verdadeira liberdade e vivem numa democracia plenamente realizada. Na realidade, eles são degradados em meros objetos, cuja função primária é produzir mercadorias e gerar lucros para outros. Mas se o comunismo pretende ser uma forma superior de sociedade, deve promover as condições para o “desenvolvimento pleno e livre de cada indivíduo”. Em contraste com o equacionamento do comunismo com a “ditadura do proletariado”, que muitos dos “Estados comunistas” adotaram em sua propaganda, é necessário olhar novamente para a definição que Marx dava da sociedade comunista como “uma associação de seres humanos livres”.
No livro O renascimento de Marx – que contém contribuições de renomados acadêmicos internacionais – apresenta um Marx em muitos aspectos diferentes daquele que é conhecido das correntes dominantes do socialismo do século XX. Seu duplo objetivo é reabrir para discussão, de forma crítica e inovadora, os temas clássicos do pensamento de Marx e desenvolver uma análise mais profunda de certos questões às quais foi dada relativamente pouca atenção até agora. Espera-se que o livro ajude, portanto, a aproximar Marx tanto daqueles que pensam que tudo já foi escrito sobre sua obra quanto para uma nova geração de leitores que ainda não foram seriamente confrontados com seus escritos.
É desnecessário dizer que hoje não podemos simplesmente confiar no que Marx escreveu há um século e meio. Mas tampouco devemos desconsiderar levianamente o conteúdo e a clareza de suas análises ou deixar de empunhar as armas críticas que ele ofereceu para um novo pensamento sobre uma sociedade alternativa ao capitalismo.
Sobre os autores
é professor associado de Teoria Sociológica na Universidade de York (Toronto) e autor de vários livros, incluindo Another Marx: Early Manuscripts to the International (Bloomsbury, 2018).